O Direito societário tem como uma de suas principais funções a mitigação dos conflitos de agência entre o acionista controlador e o acionista minoritário. Nessa lógica, a Lei das S.As. adotou um robusto sistema de proteção aos acionistas minoritários, por meio da atribuição de uma série de direitos protetivos que podem exercer contra abusos do acionista controlador.

Todavia, apesar de ser incontestável a importância de um sistema adequado de proteção ao acionista minoritário, a conformidade com os direitos dispostos pela Lei das S.As. cria um custo adicional para as companhias e os investidores — o custo de enforcement ou dar eficácia às regras legais. Esse ônus é comumente analisado pela ótica do acionista minoritário que precisa recorrer ao Poder Judiciário para fazer valer seus direitos, mas também pode ser observado numa perspectiva inversa: nos casos em que há abuso de direito pelo acionista minoritário, sobretudo aquele com participação societária insignificante, que tenta se valer de direitos atribuídos pela Lei das S.As. para tumultuar as atividades da companhia, em busca de interesses nem sempre legítimos.

Assim, visando conciliar a necessidade de proteção ao acionista minoritário e a redução dos custos de transação, a Lei das S.As. condiciona o exercício de determinados direitos à titularidade de um percentual mínimo de ações da companhia, o que ajuda a evitar abusos de acionistas com participações consideradas insignificantes. Contudo, o percentual fixado pela Lei das S.As. para o exercício de certos direitos pode ser desproporcionalmente alto para companhias abertas que, a rigor, apresentam um maior grau de dispersão de suas ações no mercado.

O que diz o artigo 291 da Lei das S.As.

Em função dessa característica das companhias abertas, o art. 291 da Lei das S.As. delega à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) a competência para reduzir o percentual mínimo aplicável às companhias abertas para o exercício de certos direitos, mediante a fixação de uma escala em função do capital social da companhia. Com relação aos percentuais passíveis de redução, o art. 291 da Lei das S.As. prevê a possibilidade de redução de percentual para o exercício dos direitos de:

  • requerer a exibição de livros da companhia (art. 105);
  • convocar assembleia geral (alínea cdo parágrafo único do art. 123);
  • requerer a adoção do processo de voto múltiplo para eleição dos conselheiros de administração da companhia (art. 141);
  • requerer a apresentação de informações à assembleia geral ordinária (art. 157, § 1º);
  • ajuizar, em nome da companhia, ação em face do administrador para reparação por danos causados pelo administrador, caso a assembleia geral deliberar por não ajuizar a ação de responsabilidade ( 159, §4º);
  • solicitar o funcionamento do conselho fiscal da companhia (art. 161, § 2º);
  • solicitar informações ao conselho fiscal (art. 163, § 6º);
  • ajuizar, em nome da companhia, ação em face da sociedade controladora para reparação por danos causados pela sociedade controladora (alínea ado §1º do art. 246); e
  • solicitar o funcionamento do conselho fiscal de companhia filiada ao grupo, quando não for permanente (art. 277).

A CVM ainda não exerceu sua competência regulamentar para a redução do percentual da maioria das matérias previstas pelo art. 291 da Lei das S.As., à exceção dos direitos de requerer a adoção do processo de voto múltiplo para eleição dos conselheiros de administração e de solicitar o funcionamento do conselho fiscal, cujas reduções de percentual foram promovidas pela ICVM nº 165/1991 (alterada pela ICVM nº 282/1998) e pela ICVM nº 324/2000, respectivamente.

Em recente estudo realizado pela Assessoria de Análise Econômica e Gestão de Risco (ASA) da CVM, concluiu-se que as matérias do art. 291 da Lei das S.As. que ainda não foram regulamentadas (à exceção do voto múltiplo) são justamente as normas mais sujeitas a movimentos arbitrários de acionistas ativistas e que, por isso, não deveriam ter os percentuais reduzidos.

O artigo 219 da Lei das S.As. e o critério de capital social

Vale comentar que o art. 291 delega à CVM a possibilidade de redução do percentual de acordo com uma escala inversamente proporcional entre o capital social das companhias e o percentual necessário para o exercício do direito: quanto maior o capital social, menor o percentual necessário. Assim, a competência regulamentar da CVM está restrita à alteração dos percentuais com base no capital social, tendo a premissa de que há uma relação direta entre a dispersão acionária e o capital social das companhias abertas.

No entanto, o critério de capital social pode trazer distorções indesejadas com relação às companhias alvo do ativismo minoritário, visto que não há uma relação direta entre a dispersão acionária e o capital social das companhias. Assim, poderia ocorrer de se exigir critérios mais rígidos em companhias com menor capital social e maior dispersão acionária e, por outro lado, exigir critérios mais flexíveis em companhias que possuem maior capital social e menor dispersão acionária, contrariando o objetivo inicial da norma.

Da mesma forma que o critério de capital social não reflete a dispersão acionária, ele também não representa o valor de mercado das companhias e desconsidera o tamanho do investimento do acionista minoritário, de forma que uma determinada companhia com menor valor de mercado pode ter o capital social superior a outra companhia com maior valor de mercado. Desse modo, a adoção de um critério de valor de mercado seria mais adequada do que o critério de capital social.

Afinal, se a intenção da lei é permitir a redução do percentual para que uma base maior de acionistas minoritários possa ajuizar ações de responsabilidade contra administrador ou controlador, por exemplo, o mais razoável é considerar o valor de mercado da companhia porque é ele que vai definir quem tem mais ou menos percentual — isto é, para ter 5% da companhia A que vale (valor de mercado) 1 bilhão de reais, o acionista precisa ter investido 50 milhões de reais na companhia A; se a companhia B vale (valor de mercado) 10 bilhões de reais, o acionista precisa ter investido 500 milhões de reais na companhia B. E, note-se, aqui se está falando em valor de mercado, e não capital social. Se o critério usado é valor de capital social, considerando que a companhia A e a companhia B têm um mesmo capital social (ainda que uma capitalização de mercado substancialmente diferente), os acionistas minoritários precisariam ter valores investidos totalmente (e irrazoavelmente) diferentes para ajuizar ações contra abusos de administradores ou controladores: um conseguiria tendo investido 50 milhões de reais e outro apenas com 500 milhões de reais aplicados.

Se a intenção da lei é permitir a redução do percentual para que mais minoritários possam ajuizar ações de responsabilidade contra administrador ou controlador, o mais razoável é considerar o valor de mercado da companhia

Mecanismos alternativos de proteção ao acionista minoritário

No referido estudo foi analisada também a possibilidade de redução do quórum de convocação de assembleias gerais, tendo sido apurado que a criação de uma escala variável entre 1% e 5% atinge um número extremamente reduzido de acionistas minoritários. Para alcançar um impacto substancial, seria necessário flexibilizar demasiadamente o percentual mínimo, o que poderia gerar efeitos negativos, como, por exemplo, a sujeição de companhias a investidores de curto prazo, que poderiam adotar um comportamento oportunista.

Nessa linha, o estudo propõe o uso de outros critérios, que seriam mais adequados à proteção do acionista minoritário — e ao mesmo tempo, mitigariam os efeitos do ativismo minoritário prejudicial ao interesse social da companhia — como, por exemplo, a possibilidade de a CVM fixar, além da redução do percentual, um período mínimo da posse das ações pelo acionista. Contudo, a possibilidade de a CVM fixar tal critério dependeria de alteração da Lei das S.As.

Outro ponto que merece crítica é a defasagem do critério de capital social, cujas faixas deveriam ser frequentemente atualizadas pela CVM. O efeito da defasagem é demonstrado pela ICVM 165/91, que reduz o percentual para o requerimento do processo de voto múltiplo. Na atual sistemática, 77% das companhias abertas já se enquadram na última faixa dos critérios (capital social superior a 100 milhões de reais).

Nesse contexto, questiona-se se a CVM não deveria adotar outro critério para a definição das faixas percentuais para exercício dos direitos definidos pelo art. 291 da Lei das S.As. pelos acionistas minoritários. Todavia, em que pese o critério ser inadequado, a delegação estabelecida pela Lei das S.As. restringiu a CVM ao uso do critério de capital social. Dessa forma, a CVM deve se limitar à redução dos percentuais com base no critério de capital social, uma vez que o uso de outros critérios seria ilegal.

Edital de audiência pública CVM nº 07/19

Recentemente, a CVM colocou em consulta o edital de audiência pública nº 07/19, com o objetivo de editar instrução para reduzir o percentual de participação que permite ao acionista minoritário ajuizar, em nome da companhia, ação judicial visando a reparação de danos causados à companhia pelos administradores ou por sociedade controladora.

Cabe mencionar que a Securities and Exchange Comission (SEC), a agência reguladora do mercado de capitais dos Estados Unidos, vem adotando medidas no sentido de mitigar o ativismo minoritário. Conforme noticiado pela CAPITAL ABERTO, em 5 de novembro de 2019, a SEC apresentou proposta para restringir a possibilidade de o acionista incluir propostas no material das reuniões. Dentre outras medidas, o regulador norte-americano propõe aumentar o tempo de posse das ações de 1 para 3 anos, mantendo o critério de titularidade de ações que tenham o valor de mercado de, no mínimo, 2 mil dólares.

A princípio a proposta de regulamentação restringe o direito do acionista. Porém, mantém a proteção ao acionista minoritário de longo prazo e cria obstáculos relevantes ao ativismo minoritário prejudicial ao interesse social da companhia.

Vale ressaltar, no entanto, que a realidade brasileira é muito diferente da norte-americana, que conta com inúmeras companhias com elevado grau de dispersão acionária. Tal característica é evidenciada pela quantidade de investidores pessoas físicas cadastrados na B3 — em outubro de 2019, esse número atingia apenas 1.536.216 pessoas (o que equivale a menos de 1% da população adulta brasileira), sendo que, ao final de 2018, era de 813.291, conforme dados da B3 e do IBGE. Já nos Estados Unidos, 54% da população adulta investia, direta ou indiretamente, em companhia abertas, conforme pesquisa divulgada em maio de 2017.

É natural a preocupação do regulador norte-americano em dificultar o acesso de acionistas minoritários aos mecanismos de proteção, uma vez que a maioria das companhias abertas tem um elevado grau de dispersão acionária.

Portanto, a iniciativa da CVM em exercer sua competência regulamentar é essencial à efetividade do sistema de proteção aos acionistas minoritários de companhias abertas, sem prejuízo das críticas ao critério fixado pelo art. 291 da Lei das S.As. Dessa forma, a CVM não deveria renunciar à sua competência regulatória em função do risco de acionistas minoritários adotarem um comportamento oportunista em detrimento dos demais acionistas da companhia.

Ressalta-se, por fim, que seria bem-vinda uma iniciativa legislativa que ampliasse os poderes regulamentares da CVM, permitindo, por exemplo, a fixação dos critérios de valor de mercado e tempo de posse das ações para as matérias do art. 291 da Lei das S.As.

Fonte: Legislação & Mercados (Capital Aberto)

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