A pandemia determinou mudanças drásticas no modo de vida da população
A pandemia de covid-19 determinou mudanças drásticas no modo de vida da população. Subitamente, um lockdown abrangente impediu a circulação de pessoas e determinou o fechamento imediato de estabelecimentos comerciais que não se relacionem à prestação de serviços essenciais. Indubitavelmente, o isolamento domiciliar reduz de forma drástica o consumo de bens e a prestação de serviços – o que, da noite para o dia, cria um ambiente propício para inadimplemento de obrigações e, num cenário macro, recessão econômica.
Diante desse contexto, é de se questionar quais os reflexos que um fato extremo como esse, imprevisível sob todas as óticas — já que o impacto desse novo vírus é incomparavelmente mais grave do que o observado em síndromes recentes —, tem nos contratos em vigor quando da eclosão da pandemia. Naturalmente, o cerne da discussão diz respeito aos contratos celebrados antes da instauração da crise, mas cuja execução se dá ou de forma continuada, ou de forma diferida, de modo que seus efeitos serão produzidos numa conjuntura totalmente diferente daquela existente quando de sua celebração.
O Direito cuidou de situações como essa sob determinados institutos. Na doutrina clássica, denomina-se rebus sic stantibus a cláusula contratual implícita em todos os contratos comutativos, de trato sucessivo ou diferido, segundo a qual as condições externas existentes no momento da formação do contrato devem se manter relativamente inalteradas quando de sua execução, sob pena de revisão ou resolução do negócio jurídico.
No Brasil, a cláusula rebus sic stantibus foi encampada pela chamada Teoria da Imprevisão, de inserção antes doutrinária e jurisprudencial e, posteriormente, refletida no Código Civil de 2002 de formas distintas. O artigo 478 criou uma hipótese de resolução do contrato, se forem observados os seguintes requisitos: tratar-se de contratos de execução periódica ou continuada, ou de execução diferida (protraída no tempo); tornar excessivamente onerosa a prestação do devedor; gerar, em contrapartida, extrema vantagem ao credor; decorrer de eventos extraordinários e imprevisíveis; e ser a causa do evento extraordinário e imprevisível estranha às partes do contrato.
A configuração desses elementos gera ao devedor o direito de pretender em juízo – ou em arbitragem, caso haja cláusula compromissória a — resolução do contrato. O credor, de seu lado, pode evitar a resolução, oferecendo-se a modificar as condições do contrato, de modo a reequilibrar.
A Teoria da Imprevisão também trouxe ao Código Civil o artigo 317, que dispõe que, quando o valor da prestação devida no momento da execução do contrato for desproporcional ao da época da celebração do contrato, o juiz (igualmente, o árbitro) poderá corrigi-lo a pedido da parte, de modo a assegurar o valor real da prestação. Trata-se de instrumento apenas de correção do valor econômico de prestações pecuniárias, no caso de desproporção provocada por fatos supervenientes. Em geral, tais fatos podem ser flutuações inesperadas do câmbio ou do índice inflacionário desproporcional à natural variação de preços do mercado. Segundo o tratamento doutrinário e jurisprudencial, essa hipótese possui aplicação ainda mais restrita em comparação à resolução, ou revisão, do contrato por força do artigo 478.
A pandemia de covid-19 e as diversas medidas governamentais instituídas para conter a disseminação do vírus podem, em tese, configurar um evento externo apto a justificar a resolução de contratos ou sua revisão. Para isso, é preciso considerar os impactos econômicos e os seus reflexos na própria execução do contrato específico. Essa análise, entretanto, somente pode ser feita caso a caso. A simples instalação de um cenário recessivo, por si só, não é o suficiente para que se seja possível rescindir ou revisar o contrato como todo, ou até mesmo reduzir o valor de uma prestação.