A pandemia de Covid-19 vem causando graves impactos à economia mundial

A pandemia deflagrada pela covid-19 vem causando graves impactos à economia mundial. Em menos de dois meses, o Ibovespa registrou uma retração de 42%, as companhias listadas na bolsa perderam mais de R$ 1,74 trilhão[1] em valor de mercado e diversos setores registraram considerável desabastecimento de componentes e insumos importados da China[2] – que já emitiu, no início de fevereiro, milhares de certificados de força maior para suas empresas[3].
Obviamente, a economia nacional também sofre com a pandemia em diversos — senão todos —  setores. A limitação da circulação de pessoas, a escassez de materiais importados e a queda na disponibilidade de mão de obra, entre outros fatores, decerto gerarão dificuldades às empresas para honrar os compromissos assumidos antes da disseminação do vírus.

Em vista desse delicado momento, a covid-19 tem sido caracterizada como evento de força maior, assim exonerando a responsabilidade das sociedades incapazes de cumprir seus contratos a tempo e modo. Mas será que pode mesmo justificar um descumprimento generalizado dos contratos celebrados antes da proliferação da doença?

COMO FUNCIONA A FORÇA MAIOR NO DIREITO BRASILEIRO

A força maior é uma das excludentes de responsabilidade previstas no Direito brasileiro. Sua ocorrência isenta o devedor inadimplente de indenizar o credor pelas perdas e danos sofridos, bem como afasta incidência de eventuais multas pactuadas entre as partes. Está regulada no art. 393 do Código Civil[4], configurando-se como o fato necessário, cujos efeitos não poderiam ser evitados ou impedidos durante o cumprimento da obrigação. Trata-se de um evento fora da esfera de controle das partes e alheio ao devedor[5], cujos impactos tornem impossível o cumprimento da obrigação no tempo, lugar e forma ajustados no contrato.

Para que haja força maior, é preciso que o acontecimento seja inevitável. A mera dificuldade do cumprimento da obrigação não caracteriza força maior[6], salvo em situações absolutamente excepcionais, em que o emprego dos meios necessários para viabilizar o adimplemento da obrigação exigiria um gasto absurdo pelo devedor, impondo-lhe um sacrifício absoluto e sujeitando-o a uma perda material intolerável[7].

EXCEÇÕES À APLICAÇÃO DA EXCLUDENTE DE RESPONSABILIDADE

A primeira exceção à caracterização da força maior como excludente de responsabilidade diz respeito aos casos em que o devedor já estava em mora antes do evento tido como força maior. Nesse caso, presume-se que o devedor assumiu os riscos da impossibilidade superveniente da obrigação ao atrasar seu cumprimento, razão pela qual não poderá tomar o evento de força maior como oportunidade e matéria de defesa – exceto se conseguir provar que o atraso original não lhe é imputável, ou que o credor incorreria nos prejuízos reclamados ainda que a obrigação tivesse sido cumprida a tempo e modo[8].

A segunda exceção envolve o chamado fortuito interno. De acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), não é sempre que a ocorrência de um evento necessário e inevitável isenta o devedor de sua responsabilidade pela reparação de prejuízos[9]. É preciso que o fato seja, ainda, estranho à organização do negócio e às atividades desempenhadas pelo devedor[10]. Se o evento irresistível for inerente aos negócios do devedor, entende-se como riscos empresariais de sua atividade e, portanto, se admite exoneração de responsabilidade.

O PAPEL DO DEVEDOR E DO CREDOR NA DISPUTA

Se o devedor comprovar que o evento em questão escapava ao seu controle e que suas consequências inviabilizam o adimplemento da obrigação, há configuração de força maior. Por se tratar de um fato impeditivo ao direito do credor de cobrar perdas e danos, a comprovação de sua ocorrência fica a cargo do devedor, que deverá demonstrar que, naquele caso concreto, não havia nada que ele pudesse fazer para impedir ou mitigar os impactos do evento e, com isso, adimplir sua obrigação[11].

Entretanto, como essa exceção só pode ser invocada para acontecimentos que escapem a toda diligência e sejam inteiramente estranhos à vontade do devedor[12], o credor pode se defender demonstrando, por exemplo, que a obrigação tornou-se impossível porque o devedor não cumpriu seus deveres de cuidado e segurança  — isto é, a obrigação poderia ter sido cumprida se o devedor tivesse adotado certas medidas para prevenir ou remediar o evento alegado —  ou  que, ainda que o evento fosse irresistível, sua ocorrência seria um risco inerente à atividade empresarial do devedor.

COMO AVALIAR O NOVO CORONAVÍRUS NESSE CENÁRIO

Em que pese diversos trabalhos já terem cravado a pandemia de covid-19 como evento de força maior passível de isentar a responsabilidade pelo inadimplemento ou autorizar a revisão ou rescisão dos contratos, não é possível afirmar isso de forma generalizada e abstrata. Como salientado, os elementos nucleares da força maior são a inevitabilidade do acontecimento e sua desvinculação aos riscos inerentes à atividade empresarial do devedor.

A inevitabilidade precisa ser apurada no caso concreto, tendo em vista as contingências reais e peculiares a ele aplicáveis, por se tratar de uma questão relativa no tempo e no espaço[13]. É preciso levar em conta as soluções tecnológicas disponíveis a cada segmento econômico e os padrões de segurança e cuidado ordinariamente impostos a ele para verificar se, naquele cenário específico, os eventos alegados como força maior poderiam ser contornados ou mitigados com a adoção de medidas preventivas ou soluções logísticas especiais (ainda que mais custosas ao devedor).

Os riscos da atividade, por sua vez, variam de acordo com o ramo de atuação de cada companhia, seus modelos de negócios, os mercados geográficos dos quais participa, a forma de prestação do serviço ou de entrega do produto, dentre outros inúmeros fatores próprios de cada sociedade empresária.

Além disso, é preciso ter em mente que a alocação de riscos contratuais também pode trazer impactos consideráveis para a eventual configuração da pandemia como um evento de força maior. O art. 393 do Código Civil — que contém a excludente de responsabilidade — é norma dispositiva que permite às partes regular em contrato quem assumirá os riscos da força maior. As partes têm ampla liberdade para redistribuir os riscos contratuais pela propagação de pandemias, bem como para mitigar ou reforçar os parâmetros gerais de ocorrência da força maior, imputando regras mais ou menos elevadas para o que se considera um evento “necessário” ou “irresistível”.

Em vista de todas essas variáveis, parece precipitado afirmar de forma prévia e generalizada que a covid-19 seja (ou não) um evento de força maior. A questão precisa necessariamente ser examinada caso a caso. Sua qualificação jurídica dependerá de diversos fatores peculiares ao caso concreto, como o tipo de contrato celebrado, as alocações de risco nele avençadas, o local onde os serviços deveriam ser prestados ou os produtos entregues, o ramo de atuação das sociedades envolvidas etc.


[1] GUIMARÃES, Fernanda; PIOVESANA, Matheus; LAURENCE, Felipe. B3 registra maior queda entre Bolsas globais. Estadão, 22 de março de 2020. Disponível em: <https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,b3-registra-maior-queda-entre-bolsas-globais,70003242944>, acesso em 23/03/2020. 

[2] BUENO, Sinara. Coronavírus: Economia e Comércio Exterior. FazComex, 20 de março de 2020. Disponível em: <https://www.fazcomex.com.br/blog/coronavirus-economia-e-comercio-exterior/>, acesso em 23/03/2020. 

[3] De acordo com a rede americana de notícias, CNBC, até o início de março, a China já havia emitido mais de 4.800 Certificados de Força Maior para companhias chinesas, com um impacto total de US$ 53,79 bilhão para os credores prejudicados pelo inadimplemento. (TAN, Huileng. China invokes ‘force majeure’ to protect businesses — but the companies may be in for a ‘rude awakening’. CNBC, 06 de março de 2020. Disponível em: <https://www.cnbc.com/2020/03/06/coronavirus-impact-china-invokes-force-majeure-to-protect-businesses.html>, acesso em 23/03/2020. 

[4] Código Civil, Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir. 

[5] MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil, volume V, tomo II: Arts. 389 a 420 – Do inadimplemento das obrigações. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 290 a 291. 

[6] MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil, volume V, tomo II: Arts. 389 a 420 – Do inadimplemento das obrigações. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 298. 

[7] GOMES, Orlando. Obrigações. 19ª Edição. Rio de Janeiro: Forense, 2019. 114 – Conceito jurídico da impossibilidade [Livro Eletrônico] 

[8] Código Civil, Art. 399. O devedor em mora responde pela impossibilidade da prestação, embora essa impossibilidade resulte de caso fortuito ou de força maior, se estes ocorrerem durante o atraso; salvo se provar isenção de culpa, ou que o dano sobreviria ainda quando a obrigação fosse oportunamente desempenhada. 

[9] STJ; AgInt no AREsp nº 941.250/RJ. Quarta Turma; Relator: Ministro Raul Araújo. Data de julgamento: 19/03/2019. 

[10] STJ; REsp nº 1.341.605. Quarta Turma; Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Data de julgamento: 10/10/2017. 

[11] Código Civil, Art. 373. O ônus da prova incumbe: (…)II – ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. 

[12] CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 11ª Edição. São Paulo: Atlas, 2014. p. 88. 

[13] CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 11ª Edição. São Paulo: Atlas, 2014. p. 89.

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