O principal índice da B3 – o Ibovespa – acompanha a queda dos mercados internacionais

A retração da economia em função dos efeitos do covid-19, o novo coronavírus, é visível no mundo todo. No mercado de capitais, entre os índices estrangeiros que apresentam as maiores quedas, estão a bolsa de Milão (FTSE MIB), com queda de 37.31%; a bolsa de Londres  (FTSE 100), com queda acima de 30%; a bolsa de Frankfurt (DAX-30), com queda acima de 35%; a bolsa de Paris (CAC 40), com queda acima de 35%; a bolsa do Japão (Nikkei 225), com queda acima de 28%; e a bolsa de Nova York (Nasdaq), com queda acima de 25%.
Embora o coronavírus tenha chegado recentemente ao Brasil (o primeiro caso foi confirmado no dia 26 de fevereiro de 2020[1]), o principal índice da B3 – o Ibovespa – acompanha a queda dos mercados internacionais, apresentando uma retração mais intensa que o resto das bolsas, até o momento acima de 56%[2]. Conforme amplamente noticiado, somente nas últimas semanas, a B3 acionou seis vezes o circuit breaker[3].

Apesar da tendência de queda das bolsas ser um padrão observado mundialmente em função dos efeitos da pandemia de covid-19, alguns fatores podem justificar o percentual acentuado da queda brasileira, se comparado com outros países. Destaca-se a migração em massa do capital investido no Brasil para papeis dos Estados Unidos e para o ouro, considerados mais seguros em tempos de crise. Outro fator importante é o processo de maturidade recente da bolsa de valores brasileira e a falta de experiência e cultura de investimento de longo prazo da maior parte dos investidores, que preferem abandonar as suas posições diante do cenário de incerteza e instabilidade. Há também fundos de investimento — detentores de grande percentual dos papeis negociados no país —  com travas de negociação, denominadas stop loss, que promovem a venda automática dos ativos quando atingem determinado percentual de desvalorização.

Em acréscimo a tudo isso, a acentuada crise do setor de petróleo, que tomou forma no início do mês de março, causou a queda de 31% das cotações da commodity nos mercados asiáticos. Os reflexos no Brasil podem ser dimensionados pela desvalorização de 54% das ações da Petrobras só neste mesmo mês e pela queda de 70% da small cap PetroRio nas últimas três semanas[4]. Dessa forma, por ter uma economia fortemente dependente da exportação de commodities — dentre elas, o petróleo —  o Brasil sofre quedas financeiras mais expressivas do que outros países mais desenvolvidos e com menor dependência do capital advindo de exportações.

A desvalorização excessiva e simultânea das ações brasileiras, refletida na queda expressiva do Ibovespa, decorre em grande parte de expectativas futuras pessimistas, especialmente no cenário macroeconômico. Todavia, essa desvalorização generalizada desconsidera aspectos intrínsecos das companhias e seus fundamentos, tais como desempenho das suas atividades, atuação da administração, reservas patrimoniais e de caixa, projeções de resultados de investimentos realizados, dentre outros.

Ocorre que, em determinados casos, a análise dissociada desses dois fatores — o cenário macroeconômico muito afetado pela pandemia de covid-19 e a situação específica de cada empresa em seu ramo de atuação – acaba por criar assimetrias e distanciar o preço de compra das ações do que poderia ser chamado de seu valor justo, seu valor intrínseco. Nesse cenário, como alternativa para evitar a desvalorização demasiada do preço das ações e até mesmo para gerar um ganho de médio-longo prazo para a própria companhia e seus acionistas, empresas brasileiras como Cielo, Banco Inter, Cosan, Cia. Hering, EZTEC e a própria B3, além de um grupo de mais de 20 empresas, estão lançando programas de recompra de ações. Mas o que esses programas significam?

Os programas de recompra de ações (ou programas de negociação por companhias abertas de ações de sua própria emissão) consistem em operações permitidas pelo artigo 30, §§ 1º ao 5º, da lei nº 6.404/1976 (Lei das S.As.) e reguladas pela Instrução CVM 567/15. Segundo o art. 2º da Instrução 567, ao negociar ações de sua própria emissão, as companhias abertas só podem adquiri-las para permanência em tesouraria ou cancelamento, ou aliená-las após serem adquiridas nos termos exigidos pela regulamentação. Esses programas são nada mais do que uma forma estruturada e regulada para que a companhia possa adquirir ações de sua própria emissão, com regras que protejam seus acionistas ou terceiros de eventuais abusos, conflitos de interesse ou ilegalidades.

E qual a relação desses programas com a pandemia de covid-19? A desvalorização generalizada — e muitas vezes irracional, decorrente de um efeito manada gerado pelo medo de que o coronavírus gere efeitos nefastos na economia — das ações nas bolsas de valores gera oportunidades para que as companhias possam adquirir ações de sua própria emissão por um valor que, em sua visão, está mais barato do que “realmente” valem.
A recompra de ações representa um investimento feito pela companhia na própria companhia. Quando uma empresa investe capital para adquirir papeis de sua própria emissão, isso significa que seus administradores, além de considerarem que as ações estão subavaliadas, acreditam no potencial de valorização futura da companhia. Ao comprar as ações que estão sendo negociadas atualmente por um preço “barato” (assumindo, portanto, que as ações valorizarão em um determinado prazo), a companhia está beneficiando os acionistas que permanecerem em seu quadro acionário, pois terá reduzido a base acionária total por um valor “menor” do que aquelas ações adquiridas “realmente” valiam. E, ironicamente, ao lançar um programa de recompra de ações, os administradores da companhia também estão sinalizando ao mercado que entendem que as ações da companhia estão subavaliadas, inspirando confiança e conforto naqueles acionistas que desejam permanecer no quadro acionário, acreditando no desempenho de longo prazo dessas ações.

Esses programas de recompra de ações são também uma alternativa ao pagamento de dividendos para aquelas companhias que tenham caixa para distribuir a seus acionistas. Se, mesmo diante da crise do coronavírus, a companhia entende que dispõe de recursos financeiros suficientes para suprir as necessidades de liquidez e cumprir com seus planos de negócios e investimentos, a tendência é que os excedentes de caixa sejam distribuídos como dividendos, desde que existam reservas de lucros ou lucro líquido do exercício recém encerrado.
Entretanto, ao invés de distribuir dividendos acima do mínimo exigido por lei (o dividendo obrigatório, previsto no art. 202 da Lei das S.As.), a companhia poderia pagar aos acionistas como dividendos apenas o dividendo obrigatório, aplicando o restante do caixa que deseja transferir aos acionistas num programa de recompra de ações. Uma medida como essa não apenas faz uma seleção natural entre aqueles acionistas que desejam receber mais caixa — o que é uma conduta totalmente legítima — e aqueles que desejam manter sua exposição nas ações da companhia — acreditando no desempenho de longo prazo— , como também permite que a valorização futura das ações da companhia gere ainda mais valor para aqueles acionistas que não venderam suas ações no programa.

Em seus aspectos jurídicos, nos termos da Instrução 567, as ações podem ser recompradas pela companhia aberta apenas para serem mantidas em tesouraria, canceladas ou posteriormente alienadas. É possível, portanto, que os acionistas se beneficiem desses programas sob dois vieses.
A primeira alternativa consiste na realização da recompra de ações para manutenção em tesouraria. O aspecto elementar dessa hipótese é o fato de que as ações mantidas em tesouraria não têm direito a dividendos, nem a voto, conforme disposto no artigo 30, §4º, da Lei das S.As. Como consequência, ao serem mantidas parte das ações em tesouraria, aumenta-se proporcionalmente a participação dos acionistas na distribuição de dividendos, bem como a sua representatividade nos quóruns de aprovação das matérias em assembleias gerais.

As ações mantidas em tesouraria podem ser reservadas para estruturação de planos de stock option, destinados a administradores e outros empregados da companhia ou, então, canceladas. Na primeira opção, o aumento da participação societária é provisório, uma vez que, após o exercício dos planos de stock option, os acionistas retornarão a seus percentuais originais de participação; enquanto, no cancelamento, o aumento de seu percentual é permanente. Em uma situação ou em outra, considerando a premissa de que a companhia se valorizará após a execução do plano de recompra de ações, o acionista que não vendeu suas ações será beneficiado indiretamente pelo plano: se as ações forem vendidas em planos de stock options  — e um plano bem estruturado, obviamente —, terão sido usadas para alinhar interesses dos administradores aos interesses dos acionistas, o que é de todo desejável; ou se forem canceladas, a base acionária total da companhia será reduzida, de modo que o acionista que não vendeu suas ações aumentará sua participação na companhia, tendo “pago” — um pagamento indireto, eis que feito pela companhia —  um preço barato para tanto.

A segunda alternativa do programa consiste na realização da recompra de ações para posterior alienação. A recolocação das ações no mercado presume uma estabilização da bolsa e a valorização da companhia, aumentando o preço das ações, de modo a assegurar um lucro da companhia com a venda das ações. É interessante notar que, até mesmo por ter uma natureza de aporte de capital, semelhante a de um aumento de capital social, a legislação fiscal determina expressamente a não computação, para fins de determinação do lucro real, das importâncias recebidas pela companhia em decorrência do lucro da venda das ações em tesouraria, de modo que não há tributação sobre esse ganho auferido com a venda das ações em tesouraria[5]. Naturalmente, o lucro auferido pela companhia reverterá, ao final, em favor daqueles acionistas que não venderam suas ações e permaneceram no quadro acionário.

Em todos os casos, a aprovação de programa de recompra de ações pela companhia envia uma mensagem positiva ao mercado. A adoção desse mecanismo transparece a confiança dos administradores na companhia e no seu potencial de crescimento e valorização. A partir dessa percepção e considerando que os administradores possuem maior acesso à informação (também de maior qualidade) sobre os índices de crescimento da companhia, o mercado tende a ter uma reação favorável e o preço da ação passa a refletir o valor dessa informação. Além disso, a retirada de ações de circulação tende a reduzir a exposição das companhias às oscilações do mercado, bem como reequilibrar a oferta e a procura pelos papéis da companhia.

A despeito desses aspectos positivos, entretanto, existem também aspectos negativos relacionados a adoção de programas de recompra. O principal ponto de crítica é o fato de que a retirada de ações do mercado reduz os papéis em circulação (free float) e, por consequência, reduz a liquidez das ações da companhia. Nesse cenário, ao regulamentar os planos de recompra de ações, a Instrução 567 estabelece, em seu artigo 8º, que “as companhias abertas não podem manter em tesouraria ações de sua emissão em quantidade superior a 10% de cada espécie ou classe de ações em circulação no mercado”.

A norma da CVM impõe também uma série de outras vedações para realização da recompra de ações no sentido de proteger os interesses da própria companhia e dos acionistas minoritários, especialmente em situação em que as ações a serem adquiridas pertencerem ao acionista controlador; a recompra for realizada em mercados organizados de valores mobiliários a preços superiores aos de mercado; estiver em curso o período de oferta pública de aquisição de ações de emissão da companhia; ou a recompra requerer a utilização de recursos superiores aos disponíveis.

Observadas as regras da CVM e constatada a viabilidade da realização da operação, o conselho de administração deverá aprovar a operação e divulgar um formulário contendo sua descrição e detalhamento, como, por exemplo, o objetivo e os efeitos econômicos esperados, a quantidade de ações que poderão ser adquiridas ou alienadas, entre outros. Os aspectos da operação devem observar as seguintes limitações: máximo de 18 meses para liquidação da operação, aquisição de até 10% das ações em circulação e existência de recursos disponíveis na companhia em forma de reservas de lucro e de capital, de acordo com apuração realizada nas últimas demonstrações financeiras divulgadas.

No cenário apresentado, evidencia-se que, se corretamente instituídos, os programas de recompra de ações podem trazer diversos benefícios, não somente sob a perspectiva da companhia e dos acionistas, mas também para o mercado em si, minimizando oscilações acentuadas que abalam o mercado de capitais como um todo.

*Colaboraram Isabella Ardaya e Renata Megda, advogadas associadas do Freitas Ferraz Capuruço Braichi Riccio Advogados.
[1] Ministério da Saúde confirma primeiro caso de coronavírus no Brasil. Disponível em:https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2020/02/26/ministerio-da-saude-fala-sobre-caso-possivel-paciente-com-coronavirus.ghtml. Acesso em: 24 de mar. de 2020.

[2] As variações foram analisadas a partir do mês de janeiro até 20 de março de 2020. Quanto as Bolsas do mundo perderam por causa do Corona Vírus. Disponível em:  https://www.sunoresearch.com.br/noticias/quanto-bolsas-perderam-coronavirus/. Acesso em: 23 de mar. de 2020.

[3] O circuit breaker é um procedimento operacional da B3 que interrompe a negociação de ativos na bolsa quando verificada oscilações negativas muito acentuadas do Ibovespa. Os parâmetros de acionamento do circuit breaker são os seguintes: (i) desvalorização de 10% em relação ao seu valor de fechamento do dia anterior: interrupção das negociações por 30 minutos; (ii) reabertas das negociações, verificada desvalorização de 15% com relação ao fechamento do dia anterior: interrupção das negociações por 1 hora; (ii) reabertas das negociações, verificada desvalorização de 20% em relação ao seu valor de fechamento do dia anterior, a B3 tem a prerrogativa de definir o período de suspensão de atividades. Disponível em:http://www.b3.com.br/pt_br/noticias/circuit-breaker- AA8D0CC70EC15A20170EE77591A4B81.htm. Acesso em: 23 de mar. de 2020.

[4] Entenda a atual crise do petróleo e seu impacto no mercado. Disponível em:https://www.sunoresearch.com.br/noticias/crise-do-petroleo-impacto-no-mercado/. Acesso em: 23 de mar. de 2020.

[5] Art. 520, inc. III, do Decreto nº 9.580/2018.

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